quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Kallicia



Meu nome é Kallicia e sempre estive nas profundezas, onde a luz do sol pouco consegue penetrar. Sozinha, não sei de onde vim, só sei que existo porque o fôlego de vida está em mim. Aqui, onde as criaturas são tão belas e misteriosas aos olhos, me pego observando com curiosidade o mundo que me cerca, aqui embaixo e lá encima.
Eu sou livre aqui — sempre fui — desbravando os oceanos, mas com um enorme vazio em meu peito. Eu sinto bem aqui, no meio do tórax, um aperto...as vezes eu subia à superfície apenas para observar o céu azul e as ilhas.
Tudo o que eu sei é natural, ninguém me contou, eu só tenho contato com animais marinhos e o que eles me ensinaram diz respeito a cooperação em grupo e a sobrevivência apenas. Eu sou uma espécie única, nunca me deparei com nada semelhante.
Moro num navio naufragado e lá estou segura. Os monstros marinhos não podem me alcançar e tampouco me desejam como presa. No convés do navio existem cabines que eu enfeitei com algas, existem objetos que eu não sei pra quê funcionam. Porém há algo que pra mim é um tesouro, um artefato mágico. Eu consigo me enxergar diante dele e tudo o que está ao meu redor. O espelho.
Em virtude da escuridão aqui embaixo, apenas quando o sol desperta que eu consigo encará-lo. E graças a ele pude notar que eu sou dotada de uma natureza nunca vista por nenhum ser vivo. Sou uma mulher do abdômen pra cima, e ao invés das pernas tenho a estrutura física de uma água viva. A epiderme transparante, pela qual é possível enxergar a mesogleia e a cavidade gastrovascular, mais abaixo se encontram os meus incríveis tentáculos, os quais eu uso como arma de defesa e caça. Me alimento de peixes e animais de porte pequeno, uso minhas unhas para dilacerá-los, mas calma, não sou uma criatura assustadora, muito pelo contrário, sou dotada de uma beleza inigualável e noto que encanto os seres lá de cima, sim, os humanos. Já me aventurei algumas vezes na superfície.

Eu vivo em algum lugar do Oceano Atlântico, perto do Brasil, onde a temperatura das águas não são tão frias. Jamais me aventuro em águas muito frias.
Enfim, foi numa manhã majestosa que eu descobri algo que até então eu nunca havia experimentado. Era mais um dia em que estava cansada do silêncio. Era muito cedo e a praia não estava repleta de seres humanos.
Sempre gostei das praias do litoral brasileiro, as pessoas são dotadas de um brilho especial e no Rio de Janeiro, eu gostava de admirar o quão as pessoas são belas. Um homem caminhava a ermo, sozinho, cabeça baixa, pensativo. Timidamente eu o olhava de longe, as ondas do mar me ocultando de seus olhos. Algo nele me atraía de forma sobrenatural, não sei se foi justamente a qualidade de estar só...dessa vez não fui eu a feiticeira, ele é quem me fisgou e eu fui de encontro a praia. Apenas nadei, a parte superior do meu corpo a mostra, meus longos cabelos verdes grudados no rosto, as brânquias em meu pescoço implorando por água, fui sem rumo.
Quando notei que estava perto demais, resolvi falar com o ser humano.

— Olá ser errante, por que tão compenetrado em seus pensamentos, por que me fascinas? — perguntei em alto e bom som.

O homem levantou a cabeça, os cabelos esvoaçando ao vento e me encarou incrédulo. Não piscou, não falou, apenas abriu a boca. Não me respondeu, ficou me olhando com cara de peixe morto. Dessa forma perguntei mais uma vez:

— Você pode me entender ser humano?

Os olhos dele se arregalaram e eu pude entender que não, ele não me entendia. Isso não me intimidou e eu segui em frente, inocente igual uma baleia. As ondas me empurravam cada vez mais, e logo eu estava presa na areia branquíssima, à mostra, viva e incrivelmente bela aos olhos de qualquer um. O homem estava atônito, perdido, não ousou se aproximar e então eu gritei:

— Ei você, se aproxime...

Ele continuou sem demonstrar que entendia a minha língua. Mas veio devagarzinho, esfregando os dedos nos olhos.

— Não acredito no que vejo, é um sonho? — perguntou sem acreditar diante da minha imagem. Você realmente é quem eu estou enxergando? — continuou boquiaberto.

— Eu sou algo que existe no mundo e que não conhece o próprio passado — respondi de imediato. Estou absurdamente encantada por você, noto que agora, aonde me encontro, estou fadada a secar ao sol, apenas pela curiosidade e desejo de estar mais perto de você — continuei olhando fundo nos olhos daquele nobre ser humano.

Pela expressão do rosto dele e pela resposta, noto que agora ele me entendia.

— Você fala minha língua agora, antes tudo o que eu pude ouvir foram sons que mais pareciam notas musicas. Você precisa voltar para a água, você vai morrer aqui — o homem demonstrou genuína preocupação.

Aos poucos eu notei que a minha pele estava seca e que minha respiração estava arfante. Não sentia dor, eu só queria estar ali olhando pra ele até morrer.

— Me mostre o mundo que eu não pude ver, me tire da solidão profunda, me conte histórias e me faça entender o meu passado. Eu sei que existe alguma conexão entre mim e você, eu sinto isso aqui em meu peito — a minha voz já estava baixinha e as palavras eram pronunciadas com dificuldade.

Dos olhos do homem brotaram lágrimas que escorreram copiosamente pelo seu rosto, confesso que isso me deixou ainda mais surpresa e emocionada.

— Eu preciso te ajudar a sair daqui, você não pode ficar nenhum segundo mais respirando o ar da atmosfera. Você vai morrer, deixe-me ajudá-la a voltar ao mar — enxugando as lágrimas ele se aproximou de mim.

Foi então que eu pude observar seus belos olhos mais de perto, e algo me era familiar. Ergui minha mão e toquei-lhe o rosto, apenas observando sem falar nenhuma palavra. Foi quando ele me tocou de volta que eu me senti a pior das criaturas...

O simples toque dele em meu corpo fez com que sua mão queimasse, em reposta ele gritou, mas não desistiu de tentar me arrastar de volta ao mar aberto.

— Não me toque, não me importo de morrer ao sol — minha voz soou como um suspiro.
Eu estava encalhada na areia, como um mamífero marinho de grande porte. Melancolicamente indefesa sobre os raios ultra — violetas.

— Mas eu preciso tirá-la daqui e não tente me deter — o homem tirou a camisa e a enrolou sobre as mãos, em seguida começou a me puxar pelos braços.

De cabeça erguida eu continuava observando suas feições rigidamente preocupadas. Me fez sentir algo que eu nunca tinha sentido antes, a minha contínua solidão se fora e eu estava no melhor dia da minha existência. Em contato com a água novamente, eu pude respirar um pouco melhor.

— Não me faça voltar ao silêncio profundo, me deixe aqui, não me importo de morrer — falei com lágrimas nos olhos. Eu estive muito tempo sozinha nadando pelos mares, tentando encontrar vestígios do meu passado, minha origem não está nas profundezas...eu sei — continuei olhando-o profundamente em seus olhos escuros.

Logo a praia estava abarrotada de seres humanos, todos olhando, apontando, gritando: "Meu Deus, que diabos é aquilo?"; "É uma sereia!"; "Sangue de Jesus tem poder!", "Ajudem a moça!".

Me desculpe, mas eu não sei nada sobre você e sobre o seu passado, e eu não posso permitir que você morra aqui ou que esteja a mercê da ganância humana. Volte para o oceano. Seja livre — ele já não falava, gritava.

Eu abaixei a cabeça conformada e então eu me fiz entender.

— Eu não quero ser livre, eu cansei de falar sozinha no escuro, eu cansei de saber de inúmeras coisas sobre as profundezas e a superfície e mesmo assim não saber nada ao meu respeito. Eu sei que a chave do meu passado está com você. Devolva-me.


O homem se assustou, olhou para trás, aonde as pessoas observavam nosso diálogo incrédulas, vários olhos arregalados olhando para mim. O homem se aproximou e falou baixinho em meu ouvido:

— Vá, prometo contar toda a verdade sobre você outro dia e em segurança — os olhos brilhavam e eu podia sentir as emanações de seu coração. Eu já sabia que um dia iria acontecer, não posso privar você disso — o homem continuou demonstrando enorme pesar.

Com aquela resposta eu me enchi de alegria, um sentimento de enormes proporções invadiu meu peito e me fez sentir algo que eu nunca senti antes. Eu sabia que tinha algo de especial naquele homem e havia uma conexão paranormal entre nós.

— Quando eu poderei vê-lo novamente? — perguntei sorridente.

— Eu vou ao seu encontro — o homem respondeu com doçura. Agora vá, antes que eles te aprisionem aqui — continuou falando baixinho.

Logo as pessoas começaram a se aproximar agitadas, todas falando ao mesmo tempo. Chegaram muito perto e logo vieram os toques. Em seguida começaram os gritos. Uma menina de cabelos claros me tocou na epiderme, encantada com o conteúdo gelatinoso da mesogleia e gritou desesperadamente.

— Socorro! Ela me queimou.

Outras pessoas curiosas começaram a me tocar os cabelos e vários gritos foram surgindo, as pessoas não se afastavam, muito pelo contrário, me cercavam como abutres. O homem tentou me proteger, empurrando as pessoas, mas eram em grande número. Homens, mulheres e crianças todos estavam abismados comigo.

— Deixem-na em PAZ!! — gritou o homem me defendendo. Deixem ela ir para o mundo dela. Ela não pertence a esse mundo cheio de maldades — continuou esbravejando e me rodeando como um pai, abrindo os braços.

— Sou um biólogo e creio que essa é a maior descoberta feita pelo homem — um jovem rapaz se pronunciou no meio da gritaria. Precisamos capturá-la, precisamos mostrá-la ao mundo - continuou radiante.

As pessoas ao redor concordaram e falavam todas juntas, mesmo sobre a ameaça de queimaduras, muitas outras tentavam me tocar.

— Você vai estudar a sua avó seu desgraçado! - o homem se impôs mais uma vez com braveza e apontou o dedo indicador na cara do jovem. Sumam todos daqui! Deixem-na em paz — continuou em severa ameaça.

Sem nada sobre as mãos ele começou a me puxar pelos braços em direção ao oceano. Gritava a plenos pulmões de dor, eu queimava a pele humana implacavelmente.

— Me solte! Eu não quero machucá-lo! — gritei ao notar que bolhas terríveis brotavam em suas mãos. Deixe que eu sigo meu caminho.

As pessoas pararam de gritar e todas me observavam impressionadas.

— Eu vou voltar ao oceano, mas me prometa que contará toda a verdade sobre o meu passado...

— Sim, eu prometo! Vou ao seu encontro.

E então as ondas foram me ajudando a entrar em alto mar e logo eu estava a uma profundidade considerável, dei um mergulho e minhas brânquias deram graças a Deus. Voltei a superfície e vi o homem me olhando, um olhar puro, sincero...as outras pessoas acenavam e gritavam.

— Me aguarde no navio naufragado, não saia de lá, não é seguro. Eles vão te caçar — o homem gritou a distância.

Confiante nas palavras do homem incrivelmente especial, eu acenei e mergulhei. Em seguida eu estava totalmente recuperada e satisfeita. Nada podia exemplificar o quão feliz eu estava, e eu nunca pensei que um dia eu poderia, se quer, ter alguma perspectiva quanto a verdade. Eu nadei, nadei como nunca, admirando os corais e as incríveis criaturas do oceano. A água límpida fazia tudo claro aos olhos.
Eu sorria, eu girava e dançava sozinha enquanto cantava. Tudo em breve seria revelado, eu saberia de onde eu vim, e já não me sentia fatalmente só no mundo. Em meu lar — no navio naufragado — próximo a um profundo abismo, lá eu estava. Era mais escuro, porém não totalmente. Em meus aposentos eu estava mais uma vez, me perguntei qual seria o nome daquele homem e como eu pude me esquecer de perguntar a ele. Olhando no espelho eu não pude notar que já não era mais a mesma e o meu instinto natural me dizia que algo estava prestes a mudar no mundo..